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Atuando de maneira transdisciplinar nas Artes Visuais, o Hangar – Centro de Investigação Artística é um espaço independente, gerido por artistas e curadores, localizado no bairro da Graça, em Lisboa. Criado em 2010, em um primeiro formato de residências itinerantes, o projeto está inserido em uma ampla rede de conexões e parcerias internacionais e é criado a partir da unificação de geografias, culturas e identidades, integrando diferentes frentes de atuação e tendo como foco de intervenção a realidade urbana de Lisboa.
Atuando concomitantemente de maneira próxima aos bairros periféricos da cidade e em articulação transnacional com artistas e instituições diversas, o projeto surge como uma resposta à falta de espaço nas instituições de artes. Nesse sentido, tem atuado como um importante catalisador das narrativas diversas que emanam dos encontros do intenso fluxo transatlântico que conecta as Américas, a África e a Europa, e que têm em Lisboa o seu ponto de convergência.
Desde 2014 ocupa um espaço na rua Damasceno Monteiro, que conta com estúdios para artistas, um local para exposições, e onde também se realizam residências artísticas e curatoriais, conferências e conversas diversas, vindo a ser uma importante plataforma de encontro para a diáspora dos países de língua portuguesa em Lisboa. O Hangar é um projeto da associação cultural sem fins lucrativos XEREM, que atua como plataforma de cooperação entre artistas e diversos setores e instituições públicas e privadas para o desenvolvimento artístico, cultural, local e internacional.
O espaço do Hangar está fechado desde 12 de março, e não temos ainda previsão de abertura, pelo menos não no formato de antes. Havia sete artistas residentes de diferentes países aqui. No momento em que a situação começou a se agravar, recomendamos que voltassem a seus países, pois tudo estava a fechar e nós não tínhamos como dar assistência. Eu também, atuando como artista, tinha uma série de viagens para Angola, Hungria, Cabo Verde… Eu iria para Luanda ao final de março para começar a realizar o meu novo filme, com a produtora Geração 80, no rio Kwanza. Tudo foi cancelado.
O momento atual é crítico, pois toda a sustentabilidade financeira do Hangar ficou reduzida a zero, e em muito pouco tempo tivemos que nos reinventar. Ainda não sei se nos reinventamos ou se estamos no processo. A reabertura vai ser difícil, pois, no início, não vamos poder voltar a juntar muitas pessoas em um só espaço. Por enquanto, vamos voltar aos poucos a usar do escritório, uma pessoa de cada vez.
Logo após um mês do início da pandemia, começamos a ver que seria muito complicado para nós estarmos a pagar a renda e os salários fixos que pagamos regularmente à nossa equipa, que são pessoas que têm famílias e que estão dependentes do Hangar. Era muito importante não ter de fechar definitivamente o espaço, como está a ocorrer com muitos projetos aqui em Lisboa, e que conseguíssemos também manter as pessoas. Atualmente temos cinco profissionais vinculados ao Hangar e até agora estamos a resistir a fazer demissões. Eu não sei, entretanto, se isso dura até o final do ano, se a situação não melhorar. Por isso, nós estamos a fazer várias candidaturas, postulando a fundos diversos. Já fizemos um orçamento de emergência e nossa previsão é de que conseguimos aguentar até dezembro antes de ficarmos sem dinheiro.
Nesse movimento para manter nossas atividades e a sustentabilidade do projeto, encontramos desafios. É difícil operar no online, pois muita coisa é de acesso livre e não estamos a cobrar nada. Pensando nessa data limite, que é dezembro, ainda estamos a nos reinventar, esperando que as coisas mudem, porque se calhar teremos que pensar em sair do imóvel, que é alugado. Como é que se trabalha em um projeto que não existe e cujo espaço está fechado? De uma maneira geral, nós temos continuado da única forma que conseguiríamos continuar: fazendo reuniões e conversando através de aplicativos como o Skype e o Zoom.
A associação que está por trás do Hangar chama-se XEREM, que antes já estava constituída com uma equipa diferente da que tem agora, mas já a fazer projetos de intervenção artística e arte pública no Intendente, zona que tinha várias fragilidades sociais. Em 2014, Lisboa estava em crise e havia uma série de programas de regeneração urbana ligados à arte socialmente engajada, como o BipZip – Bairros de intervenção prioritária em Lisboa, do qual tivemos um apoio, e de onde primeiro surgiu o Hangar.
O Programa BIP/ZIP Lisboa – Parcerias Locais, criado pela Câmara Municipal de Lisboa em 2011, é um instrumento de política pública municipal que visa dinamizar parcerias e pequenas intervenções locais de melhoria dos habitats abrangidos, por meio do apoio a projetos locais que contribuam para o reforço da coesão socioterritorial no município. O programa destina-se exclusivamente a apoiar atividades de projetos de promoção do desenvolvimento local, fomentando a cidadania ativa, a capacidade de auto-organização e a procura coletiva de soluções que contribuam para uma efetiva melhoria desses territórios e comunidades, de forma a permitir e reforçar sua integração na cidade.
Eu sou artista visual, investigadora, artista-educadora e sempre estive muito ligada a um movimento artístico que se gera em coletivo, como uma ferramenta de produção cultural mais independente. É uma forma do artista, ele próprio, conseguir criar a sua estrutura e os seus sistemas de trabalho, sem depender de meios que às vezes permeiam o processo.
Estive muito tempo a viver em Londres antes de vir para Lisboa, embora eu, culturalmente, também tenha uma relação grande com África, através de minha mãe que é angolana e que veio a Portugal na altura da independência de Angola. Aos 19 anos fui para a Inglaterra, onde fiquei quase 15 anos. Foi quando estive a trabalhar com as Câmaras e instituições municipais por lá que comecei a entender a força do que são os movimentos das chamadas artist-led organizations (organizações lideradas por artistas). Usando da arte em muitos sentidos, trabalhei em projetos socialmente engajados com a polícia, com centros comunitários, com hospitais, em áreas do sul da cidade, como Brixton e Peckham – sobretudo com a temática de regeneração urbana.
Vi muitos lugares a transformarem-se e pude fazer parte disso. Essa foi a experiência que trouxe comigo quando decidi voltar para Portugal. Eu cresci no norte do país e quando voltei, vim para Lisboa. Senti que aqui não havia muito espaço nas instituições para os artistas falarem por si e definirem a si mesmos. Eles estavam dependentes de uma série de estruturas, e senti a necessidade de criar um coletivo. O Hangar nasceu um bocado nesse sentido, dessa experiência que eu já tinha antes. A volta a Lisboa foi também um momento de começar a estar mais perto de Luanda e da África e criar esses encontros. Lisboa tem com Luanda, Maputo, o Mindelo, a Praia e São Tomé uma relação muito próxima e sólida. Há, entretanto, sempre um fantasma, que é a história da potência colonial, mas Lisboa acaba por ser o ponto de encontro de uma circulação que vem desde a América até a África.
O Hangar surgiu primeiramente através da Triangle Network, cuja base é a Gasworks, em Londres. Tive contato com o Diretor Alessio Antoniolli através da residência Muyehlekete, que fiz em 2008 no Museu Nacional de Arte, em Maputo. Disse que gostaria de replicar em Lisboa o modelo da Triangle Network. Em 2010, fizemos a primeira residência, em várias edições, até que a coisa começou a crescer e começamos também a fazer curadorias com artistas africanos de Moçambique, Angola e Cabo Verde. Para mim era essencial que o que estivéssemos a fazer criasse um lugar de encontro entre essas geografias, porque Lisboa funciona também como uma porta de entrada para a Europa, por onde sempre passam os artistas que vêm desses países, ainda que depois partam para outros lugares.
O projeto começou, então, através das residências artísticas e desse intercâmbio cultural. Chegamos em um momento em que nos sentíamos prontos para fazer um projeto com mais raiz, mais sólido, não tão pontual. Nós tínhamos a visão do projeto em si há muito tempo, e na altura pudemos apresentar nova candidatura ao programa BIP/ZIP – Parcerias Locais, da Câmara Municipal de Lisboa, mas era essencial haver um espaço.
A Triangle Network é uma rede global de artistas e organizações de artes visuais, presente em 41 países, que apoia o desenvolvimento profissional e o intercâmbio cultural entre artistas, curadores e outros profissionais de artes em todo o mundo. Criada em 1982, oferece oportunidades para que artistas se conectem, façam novos trabalhos e construam suas práticas em oficinas, residências, eventos, exposições, estágios e fornecimento de estúdios. A rede também incentiva e ajuda a angariação de fundos para projetos internacionais conjuntos e oferece oportunidades de apoio, orientação e compartilhamento de conhecimento.
Eu fui a uma agência imobiliária procurando uma garagem, e um senhor nos indicou um edifício localizado na Graça, mas não precisávamos de um espaço daquele tamanho. Como não conseguia encontrar nenhum outro sítio e o prazo da candidatura já estava a fechar, pedi uma carta ao dono da imobiliária a dizer que ficaríamos naquele imóvel e que logo depois veríamos, porque aquilo era grande demais. Entretanto, fomos selecionados e ficamos em pânico. É um espaço gigante, de quatro andares, e antes, trabalhando apenas de maneira itinerante e com parcerias, não tínhamos os encargos que um espaço representa, que são muitos, pois não é só o projeto, é toda a estrutura e a sustentabilidade dele..
Após termos sido contemplados, ficamos parados durante um ano até fazermos o contrato, porque não sabíamos muito bem o que fazer com o edifício. Na altura, a área da Graça não era exatamente o que é agora, ninguém tinha muito interesse por aquele imóvel e esse momento de espera deu-nos algum tempo para ficarmos com mais coragem e arranjarmos apoios extras para ficar no espaço, pois o dinheiro do programa não era suficiente.
Fomos fazendo as obras aos poucos. Não tínhamos muito dinheiro e conseguimos muito apoio voluntário. Contamos com mobiliários usados que a Câmara Municipal nos cedeu e que restauramos. Tudo foi reciclado, desde as portas até os cabos elétricos. Além disso, pudemos contar com arquitetas do escritório Artéria Arquitectura e Reabilitação Urbana, que já tinham experiência em trabalhar nesse tipo de projeto, com quem conseguimos fazer as obras no primeiro e segundo pisos. Nunca conseguimos, entretanto, terminar as obras nos outros pisos, porque o dinheiro nunca chega.
No início, alugamos os estúdios a turistas para termos capital antes de fazermos os projetos artísticos, e após dois anos o projeto começou a ficar mais sólido. O contrato inicialmente era de cinco anos, mas há sempre uma questão de instabilidade, pois é um imóvel privado. Recentemente, conseguimos renová-lo por mais cinco anos, após negociarmos os termos. Ali não há dinheiro privado, é realmente um trabalho duro e diário de busca por uma sustentabilidade, que atualmente temos através do arrendamento de estúdios, do funcionamento do café, da editora Hangar Books, e de várias outras formas que vamos criando.
Ao longo de cinco anos conseguimos passar de uma estrutura independente para chegar a ter alguma consistência financeira, embora ainda com as suas dificuldades, porque os apoios aqui em Portugal são reduzidos. Este ano íamos retomar as obras e finalmente fazer contratos de trabalho com algumas pessoas da equipa, saindo assim de uma situação precária de profissionais apenas a emitirem recibos verdes 1 e conseguiríamos criar a estrutura de uma organização. Pela primeira vez, conseguimos um apoio da DgArtes 2, com o qual poderíamos realizar uma série de coisas. De certa forma, é o que está a nos salvar agora.
1 Os recibos verdes são faturas emitidas pelos trabalhadores autônomos ou prestadores de serviço quando realizam algum trabalho, sem configurar vínculo empregatício nem garantia de estabilidade.
2 A Direção-Geral das Artes é um organismo do Ministério da Cultura da República Portuguesa que coordena e executa políticas de apoio às artes em Portugal.
Tinha muita gente que vinha do estrangeiro, o que impediu diversas atividades de acontecerem até o final do ano. No momento de expansão da pandemia, foi lançado para as estruturas que estavam a ser apoiadas pela DgArtes um comunicado dizendo que poderiam ter maior liberdade no uso dos recursos liberados, podendo destiná-los também para despesas de estrutura e recursos humanos. No entanto, tivemos que recriar todo o programa, à volta de como é que nós vamos conseguir dar conta de uma programação enorme que nós tínhamos e, com uma sustentabilidade zero, continuar o projeto.
Daqui a uma semana nós vamos lançar uma plataforma chamada Hangar Online. Não queremos substituir o real pelo virtual, que é também um perigo, pois há um aceleramento do espaço virtual em função do espaço físico, mas é, de certa forma, uma maneira de resistência continuar a fazer a programação e poder pagar as pessoas que estão conosco. É quase que criar um novo espaço. Tem importância esse projeto online em um momento em que estamos todos a fazer teletrabalho. Nós tivemos que criar um site completamente novo, mas não havia dinheiro para pagar designers. Tínhamos um programador, e tivemos que usar os próprios recursos dentro da nossa equipa, nos desdobrando em múltiplas tarefas.
O Compasso é uma iniciativa do Hangar, em parceria com o Governo de Portugal, a DgArtes, a Câmara Municipal de Lisboa, o BIP/ZIP, o Tate Britain e a Moleskine Foundation. O programa, criado em 2018, está voltado para a capacitação e formação de jovens e crianças imigrantes e da diáspora em Lisboa, nas artes visuais. As atividades são desenvolvidas através de cocriação com a comunidade imigrante, artistas e educadores do Hangar, priorizando a sustentabilidade dos jovens e seu desenvolvimento profissional.
Uma coisa que nunca paramos foram os trabalhos da Editora Hangar. Temos um livro editado por enquanto, que é o Atlantica Angola – Contemporary Art from Angola and its Diaspora, e neste momento estamos a trabalhar no Atlantica Mozambique, com a Ângela Ferreira como editora. Desde que estamos fechados em casa, o projeto desse livro tem sido importante para manter nossa sanidade mental, por que estivemos a trabalhar de maneira consistente, e com mais tempo disponível. Todos os textos atrasados já estão terminados e vamos lançá-lo muito em breve.
Para além disso, tínhamos programado um outro livro, chamado Keynotes, que já vem sendo desenvolvido desde o início do projeto e traz uma seleção de transcrições de conversas com artistas que passaram pelo espaço, como Paul Goodwin, Grada Kilomba, Irit Rogoff e outros. Essas conversas vão estar disponíveis também em áudio em uma biblioteca em nosso site para quem quiser ouvir, em formato de podcasts. Como a realidade física na qual operávamos não nos dava tempo, ainda não tínhamos nos aprofundado em pensar no online. Nós já tínhamos um estúdio, criado no âmbito do programa Compasso, feito com as escolas, para trabalhar com a questão da representação dos afrodescendentes. É possível agora trabalhar desde lá e emitir para uma audiência muito diversa, o que nos interessa muito, pois sempre estivemos a trabalhar muito além de Lisboa. Muito mais facilmente, uma audiência mais culturalmente diversificada poderá visitar o Hangar Online do que fisicamente, e não digo só o Hangar, mas outros espaços também, que sabemos que são visitados em sua maioria por uma população branca. Ainda que nem todos tenham acesso à internet, nem todos têm o hábito ou se sentem à vontade para entrar em espaços artísticos tampouco. O próprio espaço da arte não é acessível.
Organizamos também um programa de vídeo, com curadoria da Paula Nascimento, curadora angolana que está conosco desde o início. A primeira edição será lançada agora, e haverá o lançamento de sete filmes de artistas, em sua maioria de países de língua portuguesa. Os vídeos vão ficar disponíveis durante dez dias e estarão em uma midiateca de filmes de arte lusófonos ligados a questões pós-coloniais, de colonização e do Sul Global para pesquisa. Também já estávamos a fazer um novo projeto, que é o Hangar Music, no qual estamos a ligar a música às artes visuais, e em breve também faremos lançamentos. De certa forma, estamos agora a fazer coisas que já queríamos e que tem a ver com as relações que já tínhamos antes. Mas há coisas que não conseguimos fazer online e que não queríamos forçar se não fizesse sentido.
A maior parte das exposições que tínhamos previstas vão continuar a ser realizadas no espaço do Hangar, porque contam com objetos e nós achamos que a produção online criaria uma experiência muito aquém. Então faremos visitas por marcação, com número reduzido de pessoas, desinfecção dos espaços, seguindo aquilo que pedirem as regras do momento. Estamos, é claro, com o calendário todo atrasado, e isso vai ficar para setembro.
Quando as coisas se normalizarem, vamos tentar voltar a alugar os estúdios, mas temos que nos reinventar na parte financeira. Também estamos a prever de tentar fazer algum dinheiro com cursos. Até o momento a nossa responsabilidade social e cultural nesta crise foi sobre conseguir dar uma resposta à presente situação, de modo a poder manter os profissionais que estão a trabalhar conosco. Mas a situação do Hangar não é a mesma que a de todas as estruturas.
Acho que as medidas do governo não são satisfatórias para responder às necessidades das estruturas em seu todo. Logo duas semanas do início de tudo, a DgArtes publicou também uma linha de apoio de emergência aos profissionais do setor, mas a realidade é que os artistas em Portugal trabalham, em sua maioria, de forma precária e não têm contratos de trabalho. Então, muitos ficaram de fora e não conseguiram, em um primeiro momento, aceder a uma estrutura burocrática que foi criada de emergência. Há vários abaixo-assinados a reivindicar que o Ministério da Cultura não está a dar resposta, especialmente por parte de estruturas que ficaram sem esse apoio. Mais recentemente abriram candidaturas que buscam atender ao perfil daqueles que ficaram de fora. Também houve outros apoios que saíram, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Lisboa.
Mas há muita solidariedade entre diversos grupos que se formaram e há esta atenção a quem está a precisar mais. Há muitos movimentos e iniciativas. O Vhils, que é o artista que realiza o Festival Iminente, logo ao início organizou um festival de música para angariação de dinheiro para os hospitais. O Estado tem tomado várias medidas que soam melhor no seu discurso do que em sua aplicação, porque a logística é tão grande que nem todos acabam por ter acesso a esse dinheiro que se diz disponível. Mas, em geral, vê-se uma grande interajuda de redes de apoio, desde algo mais familiar e de amigos até um nível mais institucional. O Hangar, por exemplo, fez a distribuição de cabazes alimentares para famílias e instituições próximas com as quais trabalhávamos e que identificamos que estavam em necessidade. Pedimos donativos através de nossas redes e também adquirimos produtos.
Acho que temos que pensar em criar estruturas locais não apenas por emergência e sobrevivência, mas sim que sejam sustentáveis. Até agora as pessoas em geral têm tido bastante corpo de resistência e conseguiram aguentar. O problema é se a situação se estende para além disso, pois há um limite do quanto se aguenta. Embora as coisas estejam lentamente a retornar, ainda permanecem incertas.
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Toda essa situação, de certa forma, para mim, criou um silêncio, onde consigo aceder mais a um espaço de criação com maior qualidade do que quando andava a correr de um lado para o outro a fazer exposições em diversos sítios. Consegui acabar um guião que estava querendo fazer já havia dois anos. Consegui também experimentar coisas sem a necessidade de chegar propriamente em um resultado prático e imediato, sem ter de finalizar as coisas em um produto, mas sim a estar mais atenta ao processo. Além disso, o funcionamento virtual tem um lado bom pois tenho acesso a coisas, como mãe solteira, que não tinha antes. É claro que depois, toda a sustentabilidade disso entra em questão.
Na realidade, temos que pensar em uma política onde haja mais proteção ao trabalho do artista e condições laborais mais favoráveis, para que em situações como essa as pessoas possam contar com uma rede que já está lá, e não uma que seja criada apenas quando existe uma emergência. Acho que este momento nos fez repensar quais são as prioridades de cada instituição e de cada indivíduo. Aprende-se em muitos níveis. Em um nível humano e espiritual, nós temos que mudar a nossa forma de estar e de repensar este global, e o que ele significa em nossa rede e no setor artístico que vive às custas disso – todas as feiras de arte e bienais, dependentes de toda essa circulação global.
Nós temos que realmente criar redes sustentáveis que nos permitam também criar com o aqui e agora e não estar tão dependente dessa estrutura, que é muito frágil. É algo sobre estar mais presente. Os agricultores portugueses acabaram por ser mais requisitados do que nunca por toda a rede de supermercados alimentada pelas cadeias globais, por exemplo. Este momento acaba um bocado por fazer com que voltemos a atenção para a economia local. Não acho que será sobre os países se fecharem neles próprios, pois desde sempre essa mobilidade acontece, e não existem fronteiras, mas temos que estar mais conscientes sobre como praticá-la e sobre o grau de dependência que temos uns dos outros.